Depois de bastante tempo, volto a contar minhas andanças por Portugal. Desta vez os ventos me levaram para Amarante, terra de São Gonçalo.
São Gonçalo, arquiteto do século XIII, não é santo, e sim beato, e foi o responsável pela construção da ponte sobre o rio Tâmega, que corre pela cidade.
A ponte de São Gonçalo não é a mesma que vemos hoje, mas a cruz de duas faces que ficava no centro da ponte ainda existe. Foi colocada na fachada da igreja, embora devido a sua posição só seja possível vermos um lado.
Esse passeio, que posso dizer foi o mais espetacular desta temporada, foi organizado pela Rita Branco, do @oportoencanta, que há muito eu queria conhecer, junto com o João do @insideexperiences de Amarante. Foi um passeio inesquecível, que passo a contar.
O Passeio
Rita nos buscou na porta de casa às 9:30 e rumamos para esta cidade do alto Douro vinhateiro.
A ideia era começar o passeio visitando o museu do pintor Amadeo de Souza Cardoso, e visitar a região de dólmens de 4.000 anos antes de Cristo, que se espalham pela Serra da Aboboreira. Mas nossos guias, nos entregaram muito mais.
Começo pelo Amadeo
Amadeo de Souza Cardoso foi um pintor português nascido em 1887 que pertenceu à primeira geração de pintores modernistas portugueses.
Em 1905, Amadeo vai para Lisboa estudar na Academia de Belas Artes intencionando seguir o curso de arquitetura e em 1906 segue para Paris para continuar seus estudos, sempre apoiado por seu “tio Chico”, mas abandona o curso em 1907 e passa a desenvolver a atividade de desenhador e caricaturista, atividade que lhe garante sustento, embora viesse de família abastada.
Em 1909 aluga um atelier ao lado do endereço de Gertrude Stein no número 27 da Rue de Fleurus e em 1910 aprofunda sua amizade com Amadeo Modigliani com quem faz uma exposição em 1911 em um novo atelier no número 3 da Rue du Colonel Combes.
Em 1912 publica um álbum intitulado XX Dessins e expõe no XXVIII Salon des Indépendents e no Salon d’Automme. A seguir expõe nos Estados Unidos e na Alemanha.
Em 1914 encontra-se com Gaudí em Barcelona e é surpreendido pela guerra, que o faz retornar a Portugal.
Em 1916 em Lisboa, encontra com Almada Negreiros, que lhe dedica o livro K4 o Quadrado Azul e realiza exposições no Porto e Lisboa.
Morre em 1918 possivelmente de gripe espanhola.
O museu fica no antigo Mosteiro de São Gonçalo, que começou a ser edificado no século XVI. O edifício em si, que já serviu de mercado de carnes após a expulsão das ordens religiosas de Portugal, vale a visita.
A construção foi concluída no tempo de Felipe I de Portugal e II da Espanha, no século XVII.
Uma curiosidade é que na fachada da igreja ao lado do mosteiro ainda sobrevive uma estátua de Felipe I, que no tempo da União Ibérica, se tornou o primeiro soberano a possuir terras onde o Sol nunca se põe. Com o fim da União Ibérica as imagens de Felipe I foram destruídas, mas esta sobreviveu.
Os limites de seu império receberam nomes em sua homenagem – desde Filipeia, hoje João Pessoa no Brasil, até as Filipinas.
O museu possui um acervo que transcende o trabalho de Amadeo de Souza Cardoso.
Dentre suas peças encontra-se um casal de “diabos” peça que foi doada por um português que sobreviveu a um naufrágio na costa da África.
O casal de diabos, na verdade divindades africanas ou indianas, descansavam na sacristia da igreja e eram também prestigiados pelos amarantinos até que os invasores franceses chegaram na cidade e mandaram queimar as esculturas originais que, à época, estavam nus com os órgãos sexuais destacados.
Expulsos os franceses, os amarantinos mandaram um artesão local para entalhar outros “diabos”, de forma mais fiel possível, o que foi feito, mas dessa vez as divindades foram vestidas.
Os “diabos” conviviam bem na igreja até que D. Pedro V visitou Amarante e espantado com as figuras que compartilhavam o santo lugar, mandou que as esculturas fossem retiradas de lá. O casal então foi transferido para o claustro, até que o Arcebispo de Braga soube do fato e mandou que fossem “expulsos” de lá e queimados.
O prior do mosteiro se compadeceu do destino das imagens e limitou-se a cortar fora os órgãos sexuais e os entregou à Câmara da cidade, atenuando a pena imputada.
Foi então que o comerciante inglês Sandeman, do famoso vinho do Porto, se interessou pela peça e a arrematou por três libras de ouro para levar para sua loja em Londres, onde causaram enorme furor, pois era a primeira vez que se conhecia uma diaba e seu consorte.
Após muitos protestos do povo amarantino, Sandeman concordou em devolver as divindades à cidade e o casal retornou em viagem para o alto Douro. A chegada foi celebrada com grande festa com direito a banda de música e cortejo.
Hoje o casal repousa tranquilo no museu e até hoje gozam de alta reputação, especialmente no dia 24 de agosto,
“dia em que o diabo anda à solta”.
Doces conventuais
Depois do maravilhoso museu fomos degustar prazeres mais terrenos. Fomos para a Confeitaria da Ponte, que começou a funcionar em abril de 1930, onde conhecemos os doces feitos com a receita das freiras clarissas no século XVII/XVIII.
Experimentamos os “foguetes”, as “lérias”, as brisas do Tâmega, os “papos de anjo” e os “São Gonçalo” apreciando da janela a bela vista do Tâmega.
“Comida no papinho, pé no caminho”.
Picnic na serra
João foi então nos buscar com um veículo 4X4 com o qual passeamos pelas ruas de Amarante para recolher um enorme cesto que levaríamos para nosso picnic na serra da Aboboreira.
No caminho nosso guia ia nos contando os pormenores da história de sua cidade.
Um dos detalhes mais interessantes foram os “brasões de esquina”. São insígnias de família colocados na quina das casas, supostamente indicando que o lugar pertencia a um bastardo que, embora pudesse expor seu nome ao público, não podia empunhar o brasão na parte central da casa, mas tão somente no canto, na esquina.
Seguimos então para a segunda parte do passeio, subindo a serra.
Chegando no alto da serra, João escolheu um gramado para estendermos a toalha e então sentamos nas almofadas que ele providenciou e passamos a saborear os quitutes organizados pelo @insideexperience.
Me senti como os personagens do quadro “dejeuner sur l’herbre” de Edouard Manet, apenas com todos os personagens propriamente vestidos.
Degustamos uma garrafa de vinho verde da região que estava na temperatura ideal.
Então foi assim, saboreamos o “pão de quatro cantos” com o presunto serrano, rissóis de camarão e a “bola” feita especialmente para a ocasião pela mãe do João, dentre outras iguarias. Um verdadeiro luxo, na minha visão de luxo.
Ficamos ali tranquilos, falando sobre nossas vidas, sobre o norte, sobre a excepcional fraternidade das pessoas do norte, enquanto comíamos a comida local e bebíamos o vinho verde e uma suave brisa nos embalava diante da paisagem das montanhas.
O passeio não foi difícil nem mesmo para minha mãe, pois João providenciou uma cadeira de acampamento e ela pode aproveitar o lugar com conforto, mas sem abrir mão da rusticidade.
Alimentados fisicamente e espiritualmente, seguimos nosso caminho em direção aos dólmens do local, que em Portugal são chamados de antas ou mamoas.
A experiência foi como retroceder a 5.000 anos atrás.
Já havia visitado uma anta antes, quando as crianças eram pequenas, e contei o caso aqui, mas dessa vez com nosso guia, a “viagem” foi completa, pois ele ia explicando em detalhes os fatos, as técnicas e a história do lugar.
Depois desse mergulho na história, voltamos a Amarante e de lá fomos devolvidos à porta de casa em Gaia após um dia inteiro de muita cultura e deslumbramento.
Esse passeio eu recomendo intensamente e por certo vou repetir hora dessas.
Obrigada @insideexperience e @oportoencanta por esse dia tão especial.
Conhecendo a Rita de @oportoencanta e lendo o seu relato, eu vejo como são intermináveis as maravilhas do norte de Portugal. Através deste tipo de relato informativo e emocionante é que a nossa concepção de mundo aumenta pouco a pouco, e começamos a desejar conhecer lugares que até então não entravam na nossa lista de desejos. Linda postagem!
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Muito obrigada, Isabella!
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